Contrição


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Contrição
Contrizione


  a pretexto de uma mulher de Portinari
  que lembra Picasso (ou Antonello?)

Meus versos já têm o seu detractor sistemático:
uma misoginia desocupada entretém os ócios
compridos, meticulosamente debruçada sobre
a letra indecisa de meus versos.
Em vigília atenta cruza o périplo das noites
de olhos perdidos na brancura manchada do papel,
progredindo com infalível pontaria
na pista das palavras e seus modelos.

Aqui se detecta Manuel Bandeira e além
Carlos Drummond de Andrade também
brasileiro. Esta palavra vida
foi roubada a Manuel da Fonseca
(ou foi o russo Vladimir Maiacovsky
quem a gritou primeiro?). Esta,
cardo, é Torga indubitável, e
se Deus Omnipresente se pressente,
num verso só que seja, é um Deus
em segunda trindade, colhido no Régio
dos anos trinta. Se me permito uma blague,
provável é que a tenha decalcado em O’Neill
(Alexandre), ou até num Brecht
mais longínquo. Aquele repicar de sinos
pelo Natal é de novo Bandeira (Porque não
Augusto Gil, António Nobre, João
de Deus?). Estão-me interditas,
com certos ritmos, certas palavras. Assim,
não devo dizer flor nem fruto,
tão-pouco utilizar este ou aquele nome próprio,
e ainda certas formas da linguagem comum,
desde o adeus português (surrealista)
ao obrigatório bom-dia! (neo-realista).
Escrevendo-o quantos poetas, sem o saber,
mo interditavam apenas a mim; a mim, perplexo
e interrogativo, perguntando-me, desolado:
— E agora, José?, isto é, — E agora, Rui?

Felizmente, é pouco lido o detractor de meus versos,
senão saberia que também furto em Vinícius,
Eliot, Robert Lowell, Wilfred Owen
e Dylan Thomas. No grego Kavafi,
no chinês Po-Chu-I, no turco
Pir Sultan Abdal, no alemão
Gunter Eich, no russo André Vozenesensky
e numa boa mancheia de franceses. Que desde
a Pedra Filosofal arrecado em Jorge de Sena.
Que subtraio de Alberto de Lacerda
e pilho em Herberto Hélder e que
— quando lá chego e sempre que posso —
furto ao velho Camões. Que, em suma,
roubando aos ricos para dar a este pobre,
sou o Robin Hood dos Parnasos e das Pasárgadas.

Mas bastando-lhe o pouco que sabe de meus delitos,
e sem esse tanto que ignora, o detractor de meus versos
relata circunstanciadamente e com detalhes perversos,
a feia história de meus feios actos.
A distracção de grupos sonolentos
acorda enfim para o timbre esquisito do meu nome
(Na sombra envenenada se entretece
o primeiro braçado dos louros que hão-de
cingir-me a fronte…). Por isso não quero mal
ao detractor de meus versos. Antes lhe quero
bem. Pela teimosa persistência do seu trabalho
vigilante é afinal um detractor amoroso,
o sistemático detractor de meus versos.
  col pretesto di una donna di Portinari
  che ricorda Picasso (o Antonello?)

I miei versi hanno ormai il loro detrattore sistematico:
una misoginia sfaccendata impegna il suo considerevole
tempo libero, meticolosamente china sul
testo esitante dei miei versi.
Vegliando attento solca il periplo delle notti
con gli occhi persi sul candore macchiato della carta,
avanzando con mira infallibile
sulla pista delle parole e dei loro modelli.

Qui si riconosce Manuel Bandeira e là
Carlos Drummond de Andrade anch’egli
brasiliano. Questa parola, vita,
è stata rubata a Manuel da Fonseca
(o fu il russo Vladimir Majakovskij
a invocarla per primo?). Questa,
cardo, è di Torga senza dubbio, e
se Dio Onnipresente è percepibile,
anche in un unico verso, è un Dio
di seconda trinità, sottratto al Régio
degli anni trenta. Permettetemi una facezia,
è possibile che l’abbia plagiata a O’Neill
(Alexandre), o addirittura ad un Brecht
prima maniera. Quel rintoccare di campane
per Natale è di nuovo Bandeira (Perché non
Augusto Gil, António Nobre, João
de Deus?). Mi vengono proibite,
con una certa regolarità, certe parole. Così,
non devo dire fiore né frutto,
tantomeno utilizzare questo o quel nome proprio,
e ancora certe forme del linguaggio comune,
a partire da adeus português (surrealista)
all’imprescindibile bom-dia! (neo-realista).
Scrivendolo quanti poeti, senza saperlo,
lo proibivano solamente a me; a me, che perplesso
e interrogativo, mi domando, desolato:
— E adesso, José?, cioè, — E adesso, Rui?

Per fortuna, è poco erudito il detrattore delle mie poesie,
Altrimenti saprebbe che plagio anche Vinicius,
Eliot, Robert Lowell, Wilfred Owen,
Dylan Thomas. E poi il greco Kavafis,
Il cinese Po-Chu-I, il turco
Pir Sultan Abdal, il tedesco
Gunter Eich, il russo André Voznesenskij,
e una bella manciata di francesi. Che a partire
dalla Pietra Filosofale io saccheggio Jorge de Sena.
Che io sgraffigno da Alberto Lacerda
e rapino Herberto Hélder, e che
– quando ci arrivo e tutte le volte che posso –
derubo il vecchio Camões. Che, insomma,
rubando ai ricchi per donare a me povero,
io sono il Robin Hood dei Parnasi e delle Pasargade.

Ma bastandogli il poco che sa dei miei delitti,
e senza il tanto che ignora, il detrattore dei miei versi
riferisce circostanzialmente e con dettagli perversi,
la brutta storia delle mie brutte azioni.
La distrazione di gruppi sonnolenti
è risvegliata infine dallo strano suono del mio nome
(Nell’ombra avvelenata s’intreccia
il primo fascio degli allori che mi
cingeranno la fronte…). Perciò non voglio male
a detrattore dei miei versi. Anzi gli voglio
bene. Per la caparbia tenacia del suo vigile
lavoro è in fin dei conti un detrattore amoroso,
il sistematico detrattore dei miei versi.
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Cândido Portinari
Donna e bambino (1938)
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